12 de março de 2010

kit-kat

«Uma Experiência Absurda

Kroeber, no seu artigo "O Superorgânico", refere-se a duas experiências que teriam sido praticadas no passado. Embora o autor duvide da veracidade das mesmas, ele as utiliza como exemplo de reflexão sobre a natureza humana.
"Heródoto conta-nos que um rei egípcio, desejando verificar qual a língua-mater da humanidade, ordenou que algumas crianças fossem isoladas da sua espécie, tendo somente cabras como companheiros e para o seu sustento. Quando as crianças já crescidas foram de novo visitadas, gritaram a palavra bekos, ou, mais provavelmente bek, suprimindo o final, que o grego padronizador e sensível não podia tolerar que se omitisse. O rei mandou então emissários a todos os países a fim de saber em que terra tinha esse vocábulo alguma significação. Ele verificou que no idioma frígio isso significava pão, e, suposdo que as crianças estivessem reclamando alimentos, concluiu que usavam o frígio para falar a sua linguagem humana 'natural', e que essa língua devia ser, portanto, a língua original da humanidade. A crença do rei numa língua humana inerente e congênita, que só os cegos aciden tes temporais tinham decomposto numa multidão de idiomas, pode parecer simples; mas, ingênua como é, a inquirição revelaria que multidões de gente civilizada ainda a ela aderem.
"Contudo, não é essa nossa moral da história. Ela está no fato de que a única palavra, bek, atribuída às crianças, constituía apenas, se a história tem qualquer autenticidade, um reflexo ou imitação - como conjeturam há muito os comentadores de Heródoto - do grito das cabras, que foram as únicas companheiras e instrutoras das crianças. Em suma, se for permitido deduzir qualquer inferência de tão apócrifa anedota, o que ela prova é que não há nenhuma língua humana natural e, portanto, nenhuma língua humana orgânica.
"Milhares de anos depois, outro soberano, o imperador mongol Akbar repetiu a experiência com o propósito de averiguar qual a religião natural da humanidade. O seu bando de crianças foi encerrado numa casa. Quando decorrido o tempo necessário, ao se abrirem as portas na presença do imperador expectante e esclarecido, foi grande o seu desapontamento: as crianças saíram tão silenciosas como se fossem surdas-mudas. Contudo, a fé custa a morrer; e podemos suspeitar que será preciso uma terceira experiência, em condições modernas escolhidas e controladas, para satisfazer alguns cientistas naturais e convencê-los de que a linguagem, para o indivíduo humano como para a raça humana, é uma coisa inteiramente adquirida e não hereditária, completamente externa e não interna - um produto social e não um crescimento orgânico."

É óbvio que quando Kroeber fala em linguagem está implícita a possibilidade de estender o seu raciocínio para toda a cultura. Muitos anos depois de Kroeber, Clifford Geertz demonstrou não ser possível, à luz do conhecimento atual, esperal algum resultado da terceira experiência:
"... isso sugere não existir o que chamamos de natureza humana independente da cultura. Os homens sem cultura não seriam os selvagens inteligentes de Lord of the Flies, de Golding, atirados à sabedoria cruel dos seus indistintos animais; nem seriam eles os bons selvagens do primitivismo iluminista, ou até mesmo, como a antropologia insinua, os macacos intrinsecamente talentosos que, por algum motivo, deixaram de se encontrar. Eles seriam monstruosidades incontroláveis, com muito poucos instintos úteis, menos sentimentos reconhecíveis e nenhum intelecto: verdadeiros casos psiquiátricos. Como nosso sistema nervoso central - e principalmente a maldição e glória que o coroam, o neocórtex - cresceu, em sua maior parte, em interação com a cultura, ele é incapaz de dirigir nosso comportamento ou organizar nossa experiência sem a orientação fornecida por sistemas de símbolos significantes." (Geertz, 1978, p.61)» *

5 comentários:

  1. * Anexo 1, integral, de "Cultura, um conceito antropológico" 1986 Roque de Barros Laraia
    FJRD, CRIA FCSHUNL

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  2. Um texto que exige muito raciocinio

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  3. Talvez. Mas se for esse o motivo, lamento muito.

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