27 de julho de 2009

"génio artístico e loucura"

A palavra loucura possui múltiplos significados. Num sentido mais coloquial, loucura pode significar “extravagância, falta de bom senso, de acerto; insensatez, [ou] imponderação”, no entanto ela é também uma “Denominação colectiva de várias doenças que provocam alienação mental”, citando a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. Loucura é portanto uma designação genérica, que remete para o distúrbio mental em geral, para a falta de juízo ou sanidade mais permanentes – as psicoses –, sem se referir a nenhuma patologia em particular. Ainda que exista uma entrada específica para a “locura” no DSM-IV-TR (AAA, 2000) – o manual de referência da prática psiquiátrica, produzido pela American Psychiatric Association –, esta acontece ao nível dos síndromes ligados à cultura, como uma patologia exótica dos latino-americanos , e não na sua acepção de madness, que é a que aqui importa. A loucura é uma ideia antiga, que vem sendo transformada pelos discursos psiquiátricos nos últimos séculos, perdendo progressivamente significado técnico, em detrimento da proliferação de categorias que prometem doenças individualizadas e “verdadeiras”, preferencialmente através da prova biológica, aceitando-se também a estatística. Dir-se-ia que a loucura tem múltiplos equivalentes, a esquizofrenia nomeadamente, porém falar em loucura e na patologia psiquiátrica a, b ou c não é falar do mesmo, uma vez que os termos aportam diferentes significados. Primeiro doença do espírito, depois doença do cérebro (Gillman, 1994), a loucura tem um trajecto histórico interessante; diferentes discursos sobre a loucura e os loucos resultaram em diferentes atitudes e valorações relativas, numa história marcada pela ambiguidade (Albert; Runco, 1999; Foucault, 1999). Do desvio da loucura resultaram delinquentes e criativos, e a estratégia social para lidar com esta marginalidade não terá sido sempre a mesma, quer do ponto de vista institucional, quer do do imaginário colectivo. Em consequência de um determinado clima intelectual, um dos discursos que se acentua sobre a loucura, na viragem para o século XX, é o da sua associação à criatividade e ao prodígio , sendo própria da contemporaneidade a ideia do génio louco, em recuperação do mito clássico (Jaspers, 1956; Lavis, 2005). Não apenas se compreende que uma pequena dose de loucura é útil a determinadas formas de pensar mais out of the box (Feist, 1999), como a própria loucura é esteticizada, passando a integrar o estereótipo do criativo. Na arte e na ciência o desfile de “personalidades supra-normais” (Fonseca, 2007: 47) é conhecido e o interesse da psiquiatria histórica em interpretar quadros, cartas e biografias à luz das nosologias actuais sugere que o imperialismo cultural, ou colonização das experiências (Pussetti, 2006: 9), acontece não só no espaço, como no tempo. O passado é lido e relido – reescrito. Com a cautela de nunca afirmar peremptoriamente a redução do génio à loucura, a verdade é que esta se assemelha a uma contradição, quando a maioria dos estudos psicopatológicos traduz este naquela . A renitência em afirmar a intimidade entre as noções, arriscaria, prende-se com o “poder das palavras”, como se existissem dois tipos de loucos, para os quais só existe um termo. A noção de génio é ela mesmo obscura e a ambiguidade dos termos permite uma espécie de margem de manobra para as dinâmicas sociais de reconhecimento, admiração e crítica: genialidade e/ou loucura não são dados absolutos.
[excerto introdução, trab mestrado, notas omissas*]

4 comentários:

  1. *Referências: s.a. Loucura. In: Fonseca, J. S. (dir.). Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, XV. Lisboa e Rio de Janeiro, Editorial Enciclopédia.; American Psychiatric Association. 2000. DSM-IV-TR: Diagnostic and statistical manual of mental disorders. Washington, American Psychiatric Association.; Gilman, S. L. 1994 (1988). Disease and Representation: Images of Illness from Madness to AIDS. Ithaca e Londres, Cornell University Press.; Albert, R. S.; Runco, M. A. 1999. A History of Reasearch on Creativity. In: Sternberg, R. J. (ed.). Handbook of Creativity. Cambridge, Cambridge University Press: 16-34.;Foucault, M. 1999 [1972]. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo, Editora Perspectiva.; Jaspers, K. 1956. Genio y Locura: Ensayo de Análisis Patográfico Comparativo sobre Stindberg, Van Gogh, Swedenborg, Hölderlin. Madrid, Aguilar: 211-274.; Lavis, A. 2005. ‘La Muse Malade’, ‘The Fool’s Perceptions’ & ‘Il Furore dell’Arte’: Na examination of the Socio-cultural Construction of Genius through Madness. Anthropology & Medicine, 12 (2): 151-163.; Feist, G. J. 1999. The Influence of Personality on Artistic and Scientific Creativity. In: Sternberg, R. J. (ed.). Handbook of Creativity. Cambridge, Cambridge University Press: 273-297.; Fonseca, A. F. 2007 (1990). A Psicologia da Criatividade. Porto, Edições Universidade Fernando Pessoa.; Pussetti, C. 2006. A patologização da diversidade. Uma reflexão antropológica sobre a noção de culture-bound syndrome. Etnográica, X (1): 5-40.

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  2. tentei seleccionar o menor excerto possível com interesse e [relativa] auto-suficiência. [faltam os 'porquês'..]

    as referências, sei que dão num rol quase absurdo - devo ter um problema qualquer -, mas são apenas as enunciadas no excerto!

    **

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  3. A Das Bolas de Sabão27 de julho de 2009 às 22:46

    Sinto que tenho de ler o trabalho na íntegra. Sinto e quero.

    :)

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